O Cinefilô é uma rede de pesquisadores de cinema e filosofia. Com este módulo pretendemos levar as questões que esses domínios suscitam para a pedagogia tanto em suas teorização quanto na prática do ensino, onde o cinema é usado como ferramenta mas pouco como objeto de debate.

Uma comunidade, um cineclube e uma atividade de discussão do cinema, o Cinefilô está interessado nos vínculos que os filmes e a própria instituição cinematográfica estabelecem com o debate filosófico, ou seja, com as questões que impregnam os conceitos de representação, verdade, ação e realidade, abordados pela filosofia.

Constituído como um módulo do programa de extensão e pesquisa Educar na Sociedade da Informação 2005, realizado pela Cidade do Conhecimento, o Cinefilô dirige-se a educadores e pesquisadores com a finalidade de fomentar a reflexão sobre novas práticas e estratégias pedagógicas, integrando ciclos de palestras, visitas e trabalhos de campo, bem como atividades on-line em comunidades virtuais. Este projeto descreve os objetivos e métodos do módulo Cinefilô.

1. Introdução

Chegando ao século 21 como mais um artefato destinado à satisfação da demanda por experiências vicárias em nossa sociedade, o cinema mantém ainda uma posição de destaque frente ao que é oferecido pela televisão e pelos modernos jogos virtuais. Por ser uma forma de “imersão total”, de duração relativamente curta, realizada em um espaço público onde diversas obras circulam, é uma experiência concentrada e múltipla, e, sendo assim, o filme possui um poderoso efeito de fechamento formal que explica o poder com que essa arte emite uma significação do mundo, um julgamento dos valores e um olhar distanciado – como que de fora – da estrutura da realidade. Essa vontade de significado está longe de se mostrar explicitamente, pois se faz mediante uma rede de construções conceituais que subjazem à ficção apresentada.

Para almejar o efeito de colocar os dramas de nosso tempo, que, na maior parte das vezes, não são interpretados, em uma fugaz teleologia de cerca de duas horas de duração, o cinema mergulha no campo do debate filosófico, cujo trabalho é criticar as interpretações que lançamos à realidade, pondo em questão idéias e julgamentos que sequer percebíamos antes de começar a indagá-los.

O Cinefilô propõe uma abordagem diferente sobre o lugar que o cinema deve ocupar na sala de aula. Pois, na maioria das aulas onde filmes são exibidos, seu aproveitamento pedagógico é estrito, ou seja, trata-se apenas de uma forma de introduzir um tema particular de maneira definitiva, sem discussão. Por exemplo, em uma aula de história normalmente utiliza-se um filme como recurso para demonstrar “como ocorreu o fato histórico”, ignorando-se quaisquer outras implicações contidas na película. As questões próprias que o filme traz em sua construção não vêm à luz. Propomos uma abordagem intrínseca do filme, para que seja debatido o que nele é afirmado ou negado, julgado ou ignorado, condenado ou tolerado, que respostas assume para as indagações morais, ontológicas, epistemológicas e críticas da filosofia.

Ao observarmos a sociedade somos capazes de admitir que um número considerável de pessoas sente dificuldade para pensar livremente, e, deste modo, interpretam o mundo da maneira mais extravagante possível. Embora tal dificuldade em raciocinar criticamente tenha origens diversas, estas promovem igualmente toda uma sorte de atitudes supersticiosas, preconceituosas e, sobretudo, ignorantes.

Nossa vida cotidiana está repleta de crenças silenciosas, consideradas pela maioria dos homens como óbvias. Porém, quando pensamos criticamente sobre tais crenças percebemos que estas não são tão banais, pois representam conceitos precisos sobre como o individuo interpreta o mundo; portanto na ausência da atitude filosófica observamos que a construção da realidade geralmente é imposta por fatores externos, o que caracteriza uma forma silenciosa e eficaz de dominação. Pensar por si mesmo é ter e exercer a liberdade. Acreditamos que os equívocos cometidos na interpretação da realidade são na verdade um desconhecimento da postura crítica emancipatória e da liberdade que esta pode proporcionar.

Sendo assim, julgamos que o hábito de pensar criticamente é um mecanismo potente e indispensável para afastar o apedeutismo recorrente na atualidade, bem como suas raízes, e, conseqüentemente, a atitude filosófica é a melhor forma para a emancipação daqueles que de alguma forma estão à margem da sociedade. Estimular o pensamento crítico significa contribuir para a formação de cidadãos mais atentos, capazes de identificar, isolar e erradicar problemas de diversas ordens, que ultrapassam o âmbito pessoal e alcançam as esferas sociais de interação. Pensar para fugir da passividade.

1.1 Por que filosofia? 

Em nossa cultura e em nossa sociedade, normalmente consideramos que algo só tem direito a existir se tiver alguma finalidade prática, visível e imediata. Sendo assim a grande maioria acredita ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, ou seja, na aplicação científica à realidade. Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia e costumam afirmar que não serve para coisa alguma.

Entretanto, se é certo que as ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, alcançados através de severas regras de pensamento, se pretendem fazer progressos nos conhecimentos, ora corrigindo-os, ora aumentando-os, deve-se admitir que todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade, de procedimentos corretos para usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, pois estes podem ser corrigidos e aperfeiçoados.

Porém, a verdade, o pensamento, os métodos empíricos para desvendar os fatos, a relação entre teoria e prática, a correção e o acúmulo de saberes não são questões científicas, mas sim filosóficas. Assim sendo, o trabalho das ciências pressupõe o trabalho da Filosofia, mesmo o cientista não sendo filósofo. No entanto, como somente cientistas e filósofos estão cientes disso, o senso comum continua a afirmar que filosofia não serve para nada. O objeto da filosofia é, sobretudo, o conhecimento da realidade.

1.2 Por que filosofia e cinema? 

Nos dias atuais a indústria cultural já está inteiramente posta. Por mais que discordemos e critiquemos, não podemos negar seu poder de difusão e massificação. Podemos afirmar que um imenso número de pessoas, ao menos uma vez, já assistiu um filme, seja no cinema ou na televisão.
Porém, podemos afirmar que algo além da narrativa cinematográfica foi absorvido pelos espectadores? Ou que o mesmo número de pessoas já leu na íntegra, uma única vez que seja, um livro, motivado pelo filme que assistiram? Duvidamos disso. Mesmo sendo insubstituível o livro perdeu força frente ao bombardeio de imagens a que somos submetidos, ou seja, é difícil para um texto escrito competir com o apelo das imagens e sons sincronizados, e, sendo assim, o mesmo bombardeio desvia a atenção do espectador para eventuais questões que porventura tenham ficado implícitas ou à margem da narrativa. Entretanto destacamos que a falta de referências evidentes em uma película não implica que esta não tenha algum conteúdo filosófico, muito pelo contrário, a maioria dos filmes apresenta questões filosóficas tratatas pela maioria das pessoas como crenças silenciosas.

Sendo assim, acreditamos que o livro e o filme não precisam ser concorrentes, mas sim devem ser complementares, isto é, acreditamos que o recurso audiovisual utilizado adequadamente pode instigar o estudo aprofundado que se dá através dos livros, bem como colocar uma série de questões ignoradas pela maioria das pessoas. Desta forma, acreditamos na potência do Cinema como mecanismo para despertar o interesse pelo estudo de diversas áreas do conhecimento, porém, sobretudo pelo estudo filosófico, que como dissemos anteriormente, é desprezado pelo senso comum.

A finalidade do Cinefilô é então a de utilizar o Cinema como ferramenta primeira de reflexão, fazendo com que após analisar criticamente uma película cinematográfica o participante do módulo procure complementar e aprimorar seu raciocínio através do estudo filosófico; e que esteja preparado para propagar este conhecimento adquirido, mais uma vez, através do Cinema, de forma similar ao processo que se deu com ele.

2. Objetivos

– Pensar o cinema como forma artística que se apresenta ao expectador como real; que este seja o ponto de partida para uma reflexão crítica sobre questões filosóficas, em um primeiro momento sobre a questão: O que é real?
– Despertar o interesse pelo estudo filosófico, bem como auxiliar a formação de agentes multiplicadores do pensamento crítico. A partir da análise de filmes, propugnar a importância da atitude filosófica e fazer com que os participantes sejam capazes de assimilar e disseminar o ato de pensar criticamente.
– Criar novos ciclos de debate em torno de questões filosóficas propostas pelos participantes. 

3. Metodologia

O grupo estabelecido começará as discussões virtuais para definir os filmes que serão vistos durante o módulo.

O módulo contará com a infra-estrutura da Cidade do Conhecimento, e isto significa que todo o conteúdo estará disponível para os participantes em um portal on-line. O portal deve também facilitar a conexão com eventuais participantes não-presenciais, criar espaços para discussões e interação entre os participantes, solução de dúvidas. Deve conter textos de apoio, assim como a bibliografia básica utilizada.


Sessão 1 – Por que filosofia e cinema?

7 de maio de 2005 

Tópicos 1. Apresentação do módulo e da programa Educar: por que filosofia e cinema? A questão da realidade, da estética e do imaginário no cinema.
2.Exibição do filme Janela da Alma (2001, Brasil, 73'), de João Jardim e Walter Carvalho.
3. Debate com Giovanna Bartucci, psicanalista do Instituto Sedes Sapientae, doutora em Teoría Psicanalítica e organizadora do livro “Psicanálise, cinema e estéticas da subjetivação”.

A sessão iniciou com apresentações do curso. Após a exibição do filme, o mediador Gilson Schwartz, diretor acadêmico da Cidade do Conhecimento, deu início às discussões, que prosseguiram com as análises e referências trazidas pela psicanalista Giovanna Bartucci. Depois abriu-se o debate para os presentes. A sessão foi encerrada com um discurso do professor de história do cinema brasileiro e secretário municipal da cultura Carlos A.M. Calil.

Sinopse do filme
Dezenove pessoas com diferentes graus de deficiência visual, da miopia discreta à cegueira total, falam como se vêem, como vêem os outros e como percebem o mundo. O escritor e prêmio Nobel José Saramago, o músico Hermeto Paschoal, o cineasta Wim Wenders, o fotógrafo cego franco-esloveno Evgen Bavcar, o neurologista Oliver Sacks, a atriz Marieta Severo, o vereador cego Arnaldo Godoy, entre outros, fazem revelações pessoais e inesperadas sobre vários aspectos relativos à visão: o funcionamento fisiológico do olho, o uso de óculos e suas implicações sobre a personalidade, o significado de ver ou não ver em um mundo saturado de imagens e também a importância das emoções como elemento transformador da realidade-se é que ela é a mesma para todos.

1. Apresentação do Cinefilô, por Caio Polesi
Áudio em mp3, duração: 10'55"

2. Apresentação do Educar, por Lilian Starobinas
Áudio em mp3, duração: 8'11"
   
3. Gilson Schwartz: considerações inicais sobre o filme
Áudio em mp3, duração: 23'23", tamanho: 10MB.

4. Giovanna Bartucci: considerações inicais sobre o filme, parte 1
Áudio em mp3, duração: 9'55", tamanho: 4,5MB.

5. Giovanna Bartucci: considerações inicais sobre o filme, parte 2
Áudio em mp3, duração: 11'23", tamanho: 5,2MB.
     
6. Giovanna Bartucci fala sobre pulsão escópica
Áudio em mp3, duração: 2'14", tamanho: 1,0MB.

7. Giovanna Bartucci fala sobre constituição do sujeito
Áudio em mp3, duração: 4'27", tamanho: 2,0MB.
     
8. Debate, parte 1
Áudio em mp3, duração: 3'24", tamanho: 1,5MB.

9. Debate, parte 2
Áudio em mp3, duração: 2'00", tamanho: 1,0MB.

10. Debate, parte 3
Áudio em mp3, duração: 4'25", t
amanho: 2,0MB.

     
11. Debate, parte 4
Áudio em mp3, duração: 3'23", tamanho: 1,5MB.
     
12. Debate, parte 5
Áudio em mp3, duração: 9'48", tamanho: 4,4MB.
     
13. Debate, parte 6
Áudio em mp3, duração: 9'02", tamanho: 4,1MB.
     
14. Carlos A.M. Calil fala sobre semantização do ensino e parceiras com a universidade
Áudio em mp3, duração: 3'42", tamanho: 1.7MB.


Sessão 2 – Mito, realidade, representação, memória

4 de junho de 2005

Tópicos
– Reflexão sobre as noções de verdade, mito, memória e identidade. Análise da relação entre ficção e realidade e, por outro lado, a oposição entre “revelação” e “engano”, no âmbito da linguagem cinematográfica.
 – Exibição do filme Narradores de Javé (Brasil, 2003), direção de Eliane Caffé.
 – Debate com Rosana Elisa Catelli, mestre em Sociologia pela Unicamp, doutoranda em Multimeios, área de cinema, no Instituto de Artes da Unicamp e professora no curso de Comunicação Social da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, Bahia; atualmente desenvolve pesquisa sobre Estética e História do cinema documentário no Brasil.

Sinopse do filme
Somente uma ameaça à própria existência pode mudar a rotina dos habitantes do pequeno vilarejo de Javé. É aí que eles se deparam com o anúncio de que a cidade pode desaparecer sob as águas de uma enorme usina hidrelétrica. Em resposta à notícia devastadora, a comunidade adota uma ousada estratégia: decide preparar um documento contando todos os grandes acontecimentos heróicos de sua história, para que Javé possa escapar da destruição. Como a maioria dos moradores são analfabetos, a primeira tarefa é encontrar alguém que possa escrever as histórias.

Desenvolvimento
1. Apresentação da temática e do filme

      Breve introdução da temática a ser abordada: Uma das abordagens possíveis do filme “Narradores de Javé” consiste na tentativa de articulação entre verdade, mito, memória e identidade. É nesse contexto que o filme deverá ser analisado. As diversas versões sobre a origem do vilarejo podem ser tomadas como um bom condutor para o exame de tais noções.

      Breve introdução ao enredo do filme: o protagonista Antonio Biá é encarregado de escrever um livro com as histórias de Javé, cidade ameaçada de desaparecimento em virtude da construção de uma barragem. O seu livro é a única maneira de salvar o vilarejo, já que os feitos e relatos postos no papel legitimariam a preservação do local, quem sabe, transformando-o em um patrimônio histórico. As histórias contadas pelos moradores e as tentativas de Antonio Biá de relatar a “verdadeira” história de Javé compõem os elementos centrais da trama.

2. Exibição do filme

3.  Análise do filme:
– Verdade e mito: a construção do discurso dos habitantes de Javé;
– A natureza do mito enquanto busca da origem: as três narrativas sobre a fundação de Javé;
– Verdade, convencimento e consistência: entre os relatos orais e o documento escrito;
– Identidade e memória: a função dos relatos orais para a construção da história de Javé;
– O resgate da memória como instrumento de afirmação da identidade dos habitantes de Javé;
– A busca da identidade como marca característica dos diversos tipos de habitantes de Javé;
– A impossibilidade de se criar um documento escrito por conta das diferentes versões da história de Javé.
– Análise das características da narrativa cinematográfica a partir do filme:
– A construção do enredo a partir dos depoimentos dos moradores da região;
– Ficção e realidade: a construção da narrativa e as diferentes versões a respeito dos “fatos históricos” de Javé, a partir de dados objetivos e subjetivos, reais e ficcionais, de elementos do presente e do passado;
 – Ficção e realidade no cinema: a tênue fronteira presente na narrativa cinematográfica;
 – A linguagem cinematográfica: contar e mostrar, revelar e esconder, visível e invisível, pontos de vista;
 – Ficção e documentário: a presença do formato documental no filme.

Bibliografia
– AUMONT, Jacques et al. A Estética do filme. Campinas, SP: Papirus, 1995.
– CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2003.
– BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
– LE GOFF, Jacques. Memória. Porto, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984. (Enciclopédia Einaudi, vol.1)
– PELLEGRINI, Tânia. Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac/ Instituto Itaú Cultural, 2003.
– ROCHA, Everardo. O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 1985.
– XAVIER, Ismail. Cinema: revelação e engano. In: XAVIER, Ismail. O olhar e a cena – melodrama, Hollywood, cinema novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
– XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac/ Instituto Itaú Cultural, 2003.

Filmografia
– O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Direção: Gláuber Rocha. Brasil, 1969.
– Bye Bye Brazil. Direção: Cacá Diegue. Brasil, 1980.
– Kenoma. Direção: Eliane Caffé. Roteiro: Eliane Caffé e Luiz Alberto de Abreu. Brasil, 1998.
– Edifício Máster. Direção: Eduardo Coutinho. Brasil, 2002. Documentário.
– O Prisioneiro da Grade de Ferro. Direção: Paulo Sacramento. Brasil, 2003. Documentário.
– Terra Estrangeira. Direção: Walter Salles Jr. e Daniela Thomas. Brasil, 1995.
– Boleiros. Direção e Roteiro: Ugo Giorgetti. Brasil, 1998.

Textos
Textos para discussão da 2ª sessão
do Cinefilô: narrativa, mitos, memória e verdade no filme Narradores de Javé (Brasil, 2003), direção de Eliane Caffé.

O Livro da Salvação:
      “Narradores de Javé narra narrativas que narram narrativas, fazendo dessa vertigem recursiva uma reflexão sobre o narrar, seu valor, sua verdade e sua função, e um julgamento sobre os narradores, suas condições e suas competências, num quadro maior de confronto entre o relato oral e a civilização grafocrata e de perda da capacidade de contar histórias como tragédia do esquecimento e da impossibilidade de esclarecimento para um povo. Assim minha atenção se detém nas formas de cada narração que o filme apresenta.

Caracterizado apenas como um viajante urbano, sem indício de origem ou objetivo em sua pressa, o ouvinte da história, agente do espectador no filme, possui ele próprio uma história autônoma que teve seu início mas cujo desenlace foi adiado pelas águas intransponíveis. Este personagem, que nos liga da cidade até os remotos cantos onde, como o narrador-viajante benjaminiano, temos que nos transladar para ouvir uma história; a partir de conversas prosaicas sobre o apego de uma velha à leitura de um livro é levado a ouvir a história contada por outro narrador deslocado, personagem e portador da história de Javé. O relato é gratuito, ensejado para distrair o tempo de espera até a próxima barca, mesmo nós sabendo, pois pagamos pelo ingresso, que há nele algum valor de troca.

Começa a história. O sino, marco móvel que sintetiza a identidade da comunidade de Javé, anuncia a assembléia onde o narrador-personagem, mascate da região, é novamente quem traz uma história. De caráter profético e apocalíptico, eco de remotos mitos abruptamente presentificados num mundo desencantado, a urgência de seu anúncio justifica a presença de todos: «o certão virará praia…» O povo analfabeto do vale, de cultura oral na qual a posse da terra é cantada ao vento e não lavrada na escritura, será imundado pela engenharia das águas progressistas justificadas pela letra científica. Frente à destruição da modernidade somente um discurso legitimado pela própria cientificidade moderna e por seu critério de verdade poderá se opor. Concebem então uma narrativa que faça valer a terra e seja sua salvação. O valor da história passa a ser então a própria sobrevivência da comunidade. Cria-se um termo de equivalência onde o valor da narrativa e o da comunidade estão atrelados. Mas tal valor depende de uma verdade que é determinada pela forma escrita.

É preciso recorrer à letra, encarnada na figura marginalizada de Antônio Biá. Apesar de ser apresentado como grafomaníaco (as paredes de seu barraco são repletas de máximas, provérbios e outras letras), a justificativa para seu banimento não é, segundo o narrador, de ordem patológica, mas reação à pura malandragem de Biá em relatar (ou inventar) casos dos moradores de modo a manter um fluxo de correspondências que justificasse a sua existência de carteiro num vale de iletrados. O ato de narrar, nessa outra aparição, é meio de sobrevivência individual a custa de outros; escreve-se para custear a vida e manter um certo status relatando histórias daqueles que ignoram o valor delas, pois para valerem as histórias, sejam ficcionais ou não, necessitam cativar (do contrário inviabilizariam a fraude, já que as cartas não seriam seguidas de respostas pedindo mais detalhes). Bia é personagem excêntrico, loquaz e retrucador, um malandro que tem acesso ao mundo das letras, onde o relato oral é necessariamente reformulado segundo ordenações próprias da escritura. Essa diferenciação e afastamento ele mesmo afirma contra a comunidade que o proscreveu ao escrever na porta do seu barraco ‘não é permitida a entrada de analfabetos’, inscrição que só serve para se retrucar: ‘você não sabe ler?’ Com ele os moradores barganharão para ter um livro de histórias que ateste a importância da vila e portanto, assim esperam, mostre a infâmia de sua submersão, pois ele reconhecidamente escreve bem, apesar de, ou justamente por, mentir. Em troca ele será recebido de volta no vilarejo.

Biá, vendo o alto valor do que tem em mãos, não tarda em tirar proveito de seu cargo de escriba, prática comum dos empossados em funções públicas. Dá em cima de Babiluca, toma uns gorós no boteco, tem a barba feita de graça. Por sua vez, os moradores logo percebem nas histórias a chance de se imortalizarem homericamente pela escrita, com esse valor de perpetuação, acrescido ao da narrativa como salvação da terra, Biá tira suas vantagens.

Surgem então as narrativas fundadoras de Javé: relatos de quinta ou sexta mão contados, como se fossem testemunhas imediatas dos fatos, por autodeclarados descendentes em linha direta do mítico fundador, ou fundadora, da vila. Esperam que a veracidade de suas versões seja reconhecida pelo argumento da própria autoridade. A montagem de fantásticas imagens estilizadas narrando as rememorações, substituindo o jogo de planos-seqüência construído para a realidade prosaica da vila, dá substância à disparidade entre a subjetividade dos relatos históricos e a concretude contemporânea (cuja fonte é apenas uma: o narrado-personagem mascate). Em todos as versões os futuros javenenses buscam uma terra distante da ingerência do rei. A direção que seguem é marcadamente o da direita-esquerda, sentido oposto ao da escrita: a cidade dos analfabetos fugia da lei, da letra, da História; fuga precária cujas águas da represa representam o desfecho no qual a lei finalmente os alcança. Além desse motivo comum os relatos diferem inteiramente. No primeiro narrador, a aparição de Indalécio, o heróico comandante dos fugitivos, é a de um destemido bandeirante; bravo cavaleiro   guiado seu povo sem saber direito para onde. No segundo relato, feito por uma narradora, a proeminência é da heroína Maria Dina, uma corajosa Maria-Bonita comandando um bando de cangaceiros por sertões pedregosos até o alto das chapadas. No terceiro relato, esses dois papéis são completamente mudados: Maria é uma santa demoníaca achada por um pobre Indalécio moribundo de caganeira. Os relatos diferem no tom, passando do épico à farsa. Enquanto Biá sai pela tangente, a discussão para decidir qual história vai pro livro não chega a nenhuma decisão. Biá ouve as histórias, mas se esquiva de escreve-las. Justifica-se dizendo que os relatos deverão ser embelezados pela retórica própria das letras. Entretanto, a retórica não é exclusividade dele, todos querem embelezar as palavras, retocar-lhes o sentido, enquanto defendem sua própria versão ou ainda propõem que só todas as versões juntas é
que dariam conta da verdade.

Os próximos narradores não recorrem à história remota, seu interesse não é mais se imortalizar através de seus antepassados, mas escrever a história de forma a justificar os interesses do presente. A redação do livro sobre a cidade torna-se um catalisador das tensões do lugar, pois agora ao narrar é agregado esse valor, esse poder de dar razão aos atos. Dois irmãos disputam o espólio paterno argumentando sobre a imponderável noite de núpcias da mãe com uns incestuosos e nada santos gêmeos Cosme e Damião. Novamente relata-se um acontecido que claramente só pode vir a existir pelo duvidoso testemunho dos pais como se fosse diretamente vivenciado pelos irmãos em litígio. Biá novamente se furta a resolver o impasse. Não coloca no papel nenhuma versão.

O próximo relato, de um homem agoniado sobre como perdeu seu medo, esconde a premeditação de uma vingança que sua história buscará justificar. Frente a esses personagens Biá se perde e não escreve as histórias.

Pressionado por todos esses compromissos, o narrador encarregado de salvar a vila se esquiva de sua missão.

A última narrativa ecoa de remanescentes de um quilombo distanciado da vila de Javé. Nessa comunidade isolada à força, a tradição de contar história não morreu, mas caducou numa língua morta, que o jovem intérprete mal consegue entender. O velho narrador pensa estar na África e na sua história o herói é Indaleu, negro guiando a fuga dos escravos.

As histórias não se completam. Em pesadelo, a frágil barreira de palavras do barraco de Biá é tomada pelas águas. A cidade é invadida pelos engenheiros. Cirílio, um louco profeta, anuncia o fim. Muitos desistem e deixam a terra. Os moradores desesperados argumentam para o vídeo. A máquina externa responsável pelos últimos registros da vila, o olhar dos técnicos e da modernidade, mostra-os como seres irracionais. As pesquisas de Biá revelam-se inúteis, ele é incapaz de escrever as histórias de Javé e trai os que acreditaram nele. Acusa os moradores de escapismo frente ao inevitável, de buscar nas histórias uma grandiosidade ilusória para não enxergar a vida irrisória que levam. Diz isso andando de costas, como um Anjo da História para o qual passado que é aquela gente.

A cidade é inundada. Seus moradores, como seus fundadores, se tornam um bando errante. “Quem ignora sua história está condenado a repeti-la” diz o último plano. Biá retorna e, agora, sem o peso de tantas valorações, as histórias começam a ser contadas por puro prazer. Os moradores tiveram que ser desterrados para poderem contar as histórias de sua terra. Ou ao menos é essa a versão do primeiro narrador, que acrescenta “quem quiser que conte outra”, sobre o plano que diz quase textualmente “aqueles que não conhecem a sua história estão fadados à repeti-la.”

Na descrição do processo modernizador proposto pelo filme, os moradores de Javé perderam sua capacidade narrativa. Não possuem uma experiência compartilhada que possa assegurar sua identidade. Biá, o único letrado, é incapaz de compreender as histórias que deveria narrar: seus motivos lhe escapam e ele fica aturdido com a proporção de versões que surgem. Nesse processo, a narração, tanto a de Javé quanto a do filme, vai tornando-se cada vez mais preciosa, a medida que os moradores percebem o valor pessoal que podem ter. As histórias, ao passarem do registro oral ao escrito, oficializam-se. Como já sabia Aquiles, uma história pode equivaler à eternidade. Assim há uma progressão do valor atribuído à história que termina por inviabiliza-la.

Se em Deus e o Diabo na terra do sol, o Cego Tião é portador da história da comunidade, constituindo sua memória; se em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro as narrativas do povo ainda estão vivas; se em Bye bye Brasil não há incompatibilidade entre as formas culturais legítimas de um povo e as novas formas impostas pela modernidade; Narradores de Javé põe em questão a capacidade de narrarmos a nós mesmos. E desenraizados, incapazes de formular e dar sentido a nossa realidade, estamos condenados a perder nossa identidade e, em meio ao processo de modernização, repetirmos a nossa história.” Por Caio Polesi.
   
 – Asfalto sobre o Cangaço:
      “Analiso três filmes que retratam num percurso de quadro décadas o processo modernizador transformando a cidade arquetípica do sertão. Compondo com três estilos um quadro recorrente, fortemente alegorizado, eles retratam transformações físicas e culturais que culminam no próprio desaparecimento da possibilidade de narrar, da capacidade da cultura dar forma à realidade, conferindo-lhe significado. O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro já é por si só um epílogo: narra o destino de Antônio das Mortes depois de matar Corisco, depois de Deus e o Diabo. Aqui o Cego Júlio toma conta da encenação: os conflitos são teatralizados em poesia de cordel com e para o povo-personagem. Entretanto o final anuncia as forças da modernização, que tomam a cena. A narrativa repentista e os personagens remanescentes do seu drama se perdem entre os caminhões e rodovias asfaltadas da nova paisagem. Dez anos depois Bye bye Brasil retoma desse ponto o processo. Já numa narrativa de road-movie, a Caravana Rolidei faz ponte entre a cultura sertaneja e a urbana literalmente dando carona por aquelas estradas. Neste trânsito, vemos várias cidades e paisagens transtornadas por uma modernização que condena seus próprios promotores; os quais, como Das Mortes, são atores de um processo que por fim não poderá mais acomodá-los, deixando-lhes afinal o mesmo epílogo do matador de cangaceiros. Em vinte anos nada resta daquela cultura, que, moribunda, não pode equacionar a realidade numa configuração capaz dinamizar um sentido para a transformação que sofre: Narradores de Javé mostra o desaparecimento da cidade sertaneja, submersa pela modernização frente a qual o narrador Antônio Biá é impotente para salva-la. Desterrados, os moradores de Javé partem para a mesma perambulação esperançosa de seus antecessores.

Glauber filma em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro o crepúsculo dos seus mitos revolucionários do sertão — não sem antes leva-los à apoteose. Tece uma arquitetura alegórica mais barroca onde os personagens-síntese recolocam-se em relações mutáveis uns com os outros. O personagem central é Antônio das Mortes, que acompanhamos na visão mística que o torna um herdeiro das tradições cangaceiras antes enfrentavas. Como é próprio de seu estilo, a câmera determina movimentos do quadro segundo a classe dos personagens e suas posi&c
cedil;ões na alegoria. Ora os detêm estáticos em cômodos, no caso dos representantes da ordem, ora é uma câmera na mão que acompanha as multidões entoando cânticos, ora perscruta tatilmente o corpos dos santos e heróis do cangaço. Com essa tipologia, a mudança torna-se nítida em relação ao Professor e a Das Mortes. Os quadros compõem teatralizações dos conflitos onde o repente e a poesia de cordel não se limitam à narração e à figura de um cantador, como em Deus e o Diabo: as formas próprias da cultura sertaneja se apoderam da mise-en-scène. O mesmo povo que protagoniza o conflito assiste o desenlace da cena.

A cidade antiga perdida no meio do sertão é invadida pelo trupe de beatos e cangaceiros invocando Cosme e Damião: as duas forças de resistência apresentadas separadamente em Deus e o Diabo

ressurgem unidas em torno de Coirama, reencarnação de Lampião, acompanhado da Santa e de Oxossi, orixá guerreiro da mitologia dos escravos. Desafiam a ordem vigente do Coronel, unido ao Padre e ao Professor, mas são varridos da cidade quando esta é tomada por um ato cívico-militar trazido pelo Delegado, o burguês portador da modernidade industrial que planeja herdar o sertão para nele edificar. O novo cangaceiro deixa a cidade com seu bando prometendo retornar e vingar seus antecessores em desafio ao Coronel, senil senhor do sertão.

Chega Antônio das Mortes para saber se realmente retornaram os cangaceiros que ele já havia exterminado. É como uma figura esvaziada que surge agora, saudosa de suas lutas com Lampião e Corisco, deprimida e solitária com sua moral enigmática: uma figura imóvel como um boneco.

Os beatos-cangaceiros retomam a cidade, Das Mortes fere Coirama num embate cantado em versos de cordel. O Coronel num gesto de triunfal demagogia dá alimento ao povo, que depois fica abandonado em sua cantoria. No meio desse povo perdido onde seu líder é depositado circula Antônio das Mortes que é tomado por uma visão: vaga no deserto onde a Santa o julga culpado pelos crimes contra sua classe. Antônio das Mortes converte-se em revolucionário: deixa de ser aquele que prepara o povo para a “grande guerra” eliminando as formas de alienação religiosa e bandida para, reconhecendo nessas formas algo de essencial ao processo de emancipação, enfrentar diretamente aqueles a que antes servia.

Enquanto o Delegado planeja matar o Coronel, Das Mortes quer abrir os armazéns ao povo, mas, ainda embotado, não luta por isso, iludido de que o Delegado é um aliado. A velha ordem encarnada no Coronel chama seus jagunços e mata o Delegado, transtornando as figuras que giravam ao seu redor: o Professor, que alienava com datas históricas seus alunos, Laura, representando a continuidade e reprodução da ordem vigente, e o Padre, que seguia qualquer um. Os jagunços exterminam os beatos-cangaceiros, morre Coirama. Das Mortes e o Professor, assistidos pelo Padre, pela Santa e por Oxossi, herdam suas armas e combatem contra os jagunços do Coronel, vencendo heroicamente a velha ordem (Laura) que morre.

Mas o progresso toma o sertão por estradas e caminhões que anunciam uma era onde não há espaço para os dois heróis: perdidos no labirinto de caminhões eles perdem as referências culturais, suas armas já não lhes servem, e cada um segue seu caminho: o Professor tenta pegar carona nos veículos, Das Mortes reconhece seu alheamento na modernidade e parte solitário pelas margens do asfalto rumo ao desaparecimento.

Convertido para a atividade revolucionária, Antônio das Mortes e o Professor vencem, com as armas míticas legadas pelos sucessores de Lampião, a antiga ordem. Mas o fazem numa cidade deserta, terminam sós. Quando deixam para trás os cadáveres para espalhar a boa nova, se deparam com uma outra ordem que já tomou conta de tudo. Não encontram pessoas, somente veículos. Um mundo desencantado no qual eles e suas vitórias não fazem mais sentido.

Um Brasil novo se anuncia. Um país em transformação acelerada pela modernização que desagrega as antigas formas de cultura. Em Bye bye Brasil, a trupe da Caravana Rolidei é quem traz o show de novidades para as velhas cidades, apegadas ainda ao calendário cíclico da liturgia e das feiras, distantes dos centros que operam a mudança. A Caravana é um agente dúbio, falsificado, dessa modernidade: a trazem numa forma de apresentação mambembe, apenas suas roupagens e palavras são novas. Trazem uma modernização de fachada, feita de promessas, mas que não atingiu um ponto de ruptura. São os anunciadores, não os promotores do processo. Lord Cigano e Salomé, o núcleo da Caravana ao qual o casal sertanejo vai se espelhar, iludem-se e se deixam iludir. Ao mesmo tempo em que concorrem com as formas originárias de expressão do povo, o cordel e o repente, são alvos da disputa com modernização radical trazida pela TV. O filme é a histórias das contaminações sofridas nos deslocamentos da trupe, veículo que serve de ponte para que a velha e legítima forma de expressão ressurja revigorada na nova ordem.

O desenho do filme traz muitos paralelos com O Dragão da Maldade: as mesmas cidadezinhas arcaicas são retomadas e invadidas pela Caravana. Ela própria é, como Antônio das Mortes, um agente da mudança condenada ao desaparecimento.

O filme adota a representação subjetivada dos road-movies: constrói-se alternando a visão de personagens realistas e a sucessão de paisagens que enquadram seu percurso. A forma aqui tomada pela alegoria — que, já não sendo diretamente apresentada, é posta para ser lida em outro nível — mostra a distância em relação ao relato do filme anterior, próximo dos mitos e da oralidade popular.

Na vila de beira de rio temos o Brasil arcaico das arquiteturas coloniais. Feiras de artigos manufaturados, declamação da poesia de cordel e bandinha repentista. Chega a Caravana Rolidei como um retorno que de novo anuncia o novo, trazendo ventos de São Paulo, o sul desenvolvido. Novidade cíclica que já retorna com os velhos conchavos como prefeito. Seu show, atendendo aos mais profundos desejos do povo brasileiro, faz nevar, como em todo o país civilizado. Todo o ano é o mesmo espetáculo: depois do show, a Caravana vira um putero.

Ingenuamente inspirado pelo espetáculo, Ciço, jovem sanfoneiro da banda da cidade, abandona a família, presa a um passado que não oferece perspectiva. A forma de representação da família, deslocada do resto do filme (uma seqüência de montagem da miséria de sua vida sertaneja), alude ao estilo cinemanovista que também é abandonado pelo filme. Levando junto à mulher grávida, Ciço se oferece à Caravana, iludido com as promessas de progresso e sonhando ver o mar. Apesar de arcaico em relação à Caravana que já conta com uma vitrola, Salomé simpatiza com o garoto e eles partem.

Deixam a vila, caem no asfalto. O filme se torna um road-movie em que a nova Caravana passa a levar um elemento do Brasil antigo. Pelos caminhoneiros com
quem faz apostas, Lord conhece a lendária de Altamira, o cento da trans-amazônica, descrita como um fabuloso Eldorado. Na cidade grande, Ciço vê o mar, mas é informado de que não pode entrar porque está poluído — indício da modernização destruidora.

Na nova cidadezinha em que se instalam não há público para o show. Não é a concorrência tradicional do futebol ou da missa: o prefeito encontrou um novo meio de se promover com o advento da televisão. Nela um novo novo se anuncia: a cidade pára para ver a danceteria. Invocando seus poderes mágicos, através de Salomé, Lord explode a TV e a Caravana é obrigada a deixar o lugar.

São empurrados para grotões mais distantes à procura de uma cidade intocada pelo novo concorrente. Interrompendo numa vila a procissão que clama a Padre Cícero por chuva, encontram Zé da Luz, outro perambulador de novidades que levou até aquela cidade em desaparecimento o cinematógrafo. O Sanfoneiro finalmente aborda Salomé, que o leva para sua cama. A Caravana Rolidei encontra um público moribundo, sem perguntas a fazer ao fabuloso Lord Cigano, que, depois de arrancar lágrimas com seus truques de cartomante, é tomado por santo. Então o povo sedento o questiona sobre as razões da seca, Lord, sem saber o que dizer, invoca seus próprios sonhos e fala de Altamira, convencendo a ele mesmo.

A Caravana parte para Altamira. No meio da trans-amazônica nasce o filho de Ciço e Daslô. O jogo de seduções se complica. A paisagem torna-se devastada e inóspita. Índios abordam a caravana, trajando macacões e portando uma mini-TV esculpida em madeira. Pegam carona para Altamira para viajarem de avião. Não há diálogo com os integrantes da caravana — os índios sofrem um outro e incomparável processo de modernização, entendendo-se no meio dele com percepções e línguas próprias.

Ao chegarem em Altamira se deparam com os espinhos de peixe das antenas de TV: a modernização chegou antes deles. No meio da Amazônia foi erguida uma cidade já embebida no caldo de roquenrrou e de danceterias. Sem chances artísticas, Lord primeiro explora Andorinha com as apostas de queda-de-braço: perde tudo. Depois, com o fim da Caravana Rolidei, vão para Belém onde Salomé e Daslô prostituem-se. Porém, a honra de Ciço, que aparece como um traço arcaico frente à liberalização de Lord — que não se importa com mais nada — não permite que sua mulher sirva outro homem: resolve partir para Brasília, não sem antes reafirmar sua paixão por Salomé, personagem fote, ativa e polarizadora. É Lord que o encaminha para a nova Capital. Lá são recebidos pela assistência social, que os leva para a periferia depois de mostrar-lhes os esplendores da nova cidade.

Anos depois, a redenção é mostrada pela TV: Ciço, Daslô e sua filha Altamira se tornam sanfoneiros com baile próprio. A cultura arcaica, transformada de acordo com as novas regras do show, encontra seu lugar na cidade grande. A Caravana Rolidei reaparece, mas agora não são mais acompanhados pelo Sanfoneiro: parte para reencontrar o Brasil antigo e mostrar-lhe as novas novidades de néon. Tomam o rumo da estrada do sol nascente em direção às montanhas, dando continuidade ao processo de que foram promotores.

Em Bye bye Brasil temos um processo de modernização dividido, em que cada etapa que se estabelece suprimindo a anterior. Há um happy-end que não se equivale à vitória heróica de Antônio das Mortes no filme de Glauber. A Caravana Rolidei cumpre o papel de mediador entre a cultura antiga e a nova, tanto nas formas do espetáculo quanto nos costumes sexuais. No espelhamento dos dois casais compete a Ciço e Daslô dar continuidade a uma nova esperança de utopia, que no filme é chamada Altamira. Assim, a antiga cultura adquire seu espaço na modernidade, submetendo-se, como fez seu diretor, à televisão.

A gama de espaços e personagens é mais abrangente e heterogênea: o filme se espalha analiticamente pelo país seguindo o percurso errático da Caravana: das cidades pequenas às grandes, das grandes às pequenas. O espaço que torna possível sua existência se afunila, de um lado pelo avanço da modernidade, do outro pela pobreza das cidades pelas quais a modernização não tem interesse. Fogem da TV até chegarem num beco sem saída. Carregam consigo um negro escravizado — índice do seu arcaísmo; deparam-se com uma população indígena aos quais não há contato possível; perdem apoio dos poderes locais; e encontram o próprio cinema brasileiro tão sem saída quanto eles.

O filme aponta uma reconciliação possível entre o velho e o novo. A nova síntese é apresentada repentinamente pela televisão, a portadora de todos os finais felizes. Brasília cumpre as promessas trazidas pela modernidade, e quem diz bye bye Brasil é apenas a heróica Caravana Rolidey. Haja euforia para propor isso em 1978.” Por Caio Polesi.

Ouça as análises e discussões formuladas no encontro
Após o inicial encaminhamento de questões relativas ao curso e ao ambinete virutal, exposto por Caio Polesi, mediador da sessão, Rosana Catelli iniciaou as discussões trazendo as embricações históricas entre cinema e história e introduzindo o filme. Depois da exibição do Narradores, iniciou-se a análise do filme, seguida de debate com o público.

1. Informes do curso, pelo mediador Caio Polesi
Áudio em mp3, duração: 4'11", tamanho: 1,9MB.
     
2. Apresentação de Rosana Catelli
Áudio em mp3, duração: 1'01", tamanho: 600kB.

3. Excurso de Rosana Catelli sobre cinema e educação
Áudio em mp3, duração: 7'21", tamanho: 3,3MB.

4. Introdução prévia de Rosana Catelli sobre o filme
Áudio em mp3, duração: 12'43", tamanho: 5,8MB.

5. Considerações iniciais sobre o filme, por Caio Polesi
Áudio em mp3, duração: 4'52", tamanho: 2,2MB.

6. Rosana Catelli: análise do filme, parte 1
Áudio em mp3, duração: 6'20", tamanho: 2,9MB.

7. Rosana Catelli: análise do filme, parte 2
Áudio em mp3, duração: 7'19", tamanho: 3,3MB.

8. Rosana Catelli: análise do filme, parte 3
Áudio em mp3, duração: 9'14", tamanho: 4,2MB.

9. Rosana Catelli: análise do filme, parte 4
Áudio em mp3, duração: 8'45", tamanho: 4,0MB.

10. Debate, parte 1
Áudio em mp3, duração: 12'15", tamanho: 5,6MB.

11. Debate, parte 2
Áudio em mp3, duração: 3'31", tamanho: 1,6MB.

12. Debate, parte 3
Áudio em mp3, duração: 12'16", tamanho: 5,6MB.

13. Debate, parte 4
Áudio em mp3, duração: 1'05", tamanho: 515kB.

14. Debate, parte 5
Áudio em mp3, duração: 1'17", tamanho: 604kB.


Sessão 3 – “Consciência moral e representação da cidade”

dia 6 de agosto de 2005

Tópicos
1. 14h-15h — Apresentação do palestrante e do tema.
    Palestrante Raquel Imanishi Rodrigues
2. 15h-16h40 — Exibição do filme O Invasor (2001 Brasil, 97'), de Beto Brant.
3. 16h40-16h50 — Pausa para café.
4. 16h50-18h — Debate com Raquel Imanishi Rodrigues (doutoranda em filosofia, USP). A partir do filme, ponderar sobre a crise de consciência no mundo contemporâneo observando a representação da cidade e construção de uma identidade dos excluídos.

Mediador: Caio Polesi

Sinopse do filme
Estevão, Ivan e Gilberto são companheiros desde os tempos de faculdade. Além disto, são sócios em uma construtora de sucesso há mais de 15 anos. O relacionamento entre eles sempre foi muito bom, até que um desentendimento na condução dos negócios faz com que eles entrem em choque, com Estevão, sócio majoritário, ameaçando deixar o negócio. Acuados, Ivan e Gilberto decidem então contratar Anísio (Paulo Miklos), um matador de aluguel, para assassinar Estevão e poderem conduzir a construtora do modo como bem entendem. Entretanto, Anísio tem seus próprios planos de ascensão social e aos poucos invade cada vez mais as vidas de Ivan e Gilberto.

1. Raquel fala sobre a retomada do cinema nacional
Áudio em mp3, duração: 5'26", tamanho do arquivo: 2,49 MB.

2. Raquel compara as críticas feitas ao filme "Cidade de Deus" com "O Invasor"
Áudio em mp3, duração: 1'45", tamanho do arquivo: 820KB .

3. Filme X Realidade – Como olhar os filmes?
Áudio em mp3, duração: 3'11", tamanho do arquivo: 1,45 MB.

4. O mundo construído em "O Invasor" – polaridades e alinhamentos
Áudio em mp3, duração: 5,85MB , tamanho do arquivo: 12'47".

5. O poder da música em "O Invasor"
Áudio em mp3, duração: 1'26", tamanho do arquivo: 675KB .

6. A simplicidade da trama do filme "O Invasor"
Áudio em mp3, duração: 4'30", tamanho do arquivo: 2,06MB.

7. O personagem Anísio
Áudio em mp3, duração: 4'19", tamanho do arquivo: 1,97MB.

8. Raquel dá sua opinião sobre o filme
Áudio em mp3, duração: 44", tamanho do arquivo: 344KB.

9. A questão do "limite" em "O Invasor" e a utilização da música
Áudio em mp3, duração: 2,94MB , tamanho do arquivo: 6'26".

10. A verossimilhança do filme
Áudio em mp3, duração: 5'01", tamanho do arquivo: 2,29MB.

11. Quem é o invasor?
Áudio em mp3, duração: 5'13", tamanho do arquivo: 2,39MB.

12. A moral em "O Invasor"
Áudio em mp3, duração: 3,72MB, tamanho do arquivo: 8'19".

13. A construção da narrativa
Áudio em mp3, duração: 1'08", tamanho do arquivo: 573KB .

14.A preocupação do filme em criar um mundo próprio
Áudio em mp3, duração: 6'40", tamanho do arquivo: 3,05MB.

15. O filme é moralista ou não?
Áudio em mp3, duração: 10'01", tamanho do arquivo: 4,58MB.


Sessão 4 – “Sujeito na sociedade de massas”

dia 3 de setembro de 2005

Tópicos
1. 14h-15h — Fechamento das discussões da sessão anterior e encaminhamentos de atividades dos grupos.
2. 15h-16h50 — Exibição do filme Edifício Master (2002 Brasil, 110'), de Eduardo Coutinho.
3. 16h50-17h00 — Pausa para café.
4. 17h-18h — Debate com Rosane Preciosa (doutora em psicologia clínica pela PUC e professora da Universidade Anhembi Morumbi e Faculdade Santa Marcelina). A discussão se dará em torno de temas como: sujeito, indivíduo, sociedade de massas, sociedade do espetáculo e mascaramento do real.

Mediador: Caio Polesi

Sinopse do filme
Durante sete dias, uma equipe de cinema filmou o cotidiano dos moradores do Edifício Master, situado em Copacabana, a um quarteirão da praia. O prédio tem 12 andares e 23 apartamentos por andar. Ao todo são 276 apartamentos conjugados, onde moram cerca de 500 pessoas. Eduardo Coutinho e sua equipe entrevistaram 37 moradores e conseguiram extrair histórias íntimas e reveladoras de suas vidas.

1. Caio Polesi contextualiza o trabalho de Eduardo Coutinho dentro da trajetória do documentário internacional e nacional
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